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A obra de arte plástica é regida por leis de natureza espacial que o criador apreende através do seu trabalho. Se o crítico nunca se deu ao incómodo de praticar semelhantes leis, o seu julgamento estético confina-se a tecer uma fraseologia de mitos poéticos que ele dedica aos seus artistas eleitos.
 

Conclusão: a obra de Irene Gomes é válida, é mesmo muito válida; só lhe falta essa lírica crítica para cantá-la.
 

Nadir Afonso

LIVRE DE CABELOS VERDES
Um álbum que retrospetiva os círculos de um artista é como que um chaveiro de símbolos que nos permite aceder ao interior das fortalezas, redescobrindo labirintos da criação, portas entreabertas das oficinas do tempo. Na sua breve cronologia a artista Irene Gomes, já aceitou subdividir a sua unidade, pois a vida tem diversas e complexas idades, e estados de obsessões, jogos de coração e de decoração. E os jogos desta artista vão da próxima rua à mais distante lua. Vão dos animais mais domésticos às feras mais pavorosas. Vão da terra com os seus linhos e mulheres de papel, aos mares, com seus peixes e adoradores de Sol. Vão, entre o corpo e a sombra, do Minho a Timor. Vão à procura de cura para a melancolia, por leiras e areias, cata-ventos e conventos, abraços e embaraços. (...)

É no emaranhado mais ou menos denso de opacidades e grafismos que se inicia o discurso estético em Irene Gomes, a Pintora. A um primeiro olhar há como que um som rouco, ganga ou velatura, a nimbar de mistérios as porções de cor que emergem para sinalizar caminho aos olhos, para os guiar na procura, para os elevar ao âmago de emoções em regra, fortes, afinal a essência de um trabalho que se afirma, também, pela diferença eminentemente pessoal. 
Trama e textura, a força de pigmentos quase puros e a dúctil linha que vibra para atenuar os contrastes definidores das figuras e das formas, são características só aparentemente imediatistas.
O vigor e equilíbrio das composições, o subtil modo de abordar os temas e o cuidado posto na exaltação das suas linhas fundamentais, conduzem a parâmetros de análise que propiciam outra leitura. A este nível de diálogo, com a obra de Irene Gomes acedemos a registos gerados por uma sensível apreensão do real que, decantado, se transforma na paisagem interior capaz de nos tocar, pelo seu ímpeto, mágico e harmonia. (...)

UMA FORTE INTUIÇÂO
Retenhamos esta noção insuspeita, extremamente importante: à medida que o objecto através dos tempos, na sua atracção da forma universal e absoluta, passa pela expressão das diferentes qualidades reais, perfeição, evocação, originalidade e se reduz à sua pura especificidade harmoniosa (esta não é uma qualidade dizível mas sim, uma quantidade visível) a obra de Arte não mais consente o seu acesso  a  uma   estética  explicativa  por  muito  culta e inteligente que seja. O que será, com efeito, descritível numa arte reduzida à sua pura harmonia plástica? Atentemos nesta incapacidade crítica e vejamos as consequências da sua negligência fatal: a lei harmoniosa que sempre jogou como acréscimo e simples realce das outras qualidades, uma vez depurada e isolada na sua unicidade, perde aos olhos do esteta, interesse objectivo e, por consequência, significação real. (...)

Quando os meus olhos foram passando, cada vez mais deslumbrados, pelos quadros de Irene Gomes, foi como se a memória e o sentir que retinham as imagens “ de marés vivas, de ventos e relâmpagos oceânicos, de águas transbordantes em cais subitamente vazios” me trouxessem de novo, cada verso, cada palavra, cada sílaba da prodigiosa Ode “Senhora das Tempestades”.
Sem a saber de cor, era como se a emoção provocada pelas cores, pelas formas de grande carga poética, de grande finura e, por vezes, de extraordinária densidade dramática, fizessem de novo ecoar em mim a musicalidade, os ritmos perturbantes, as pulsões de vida e de morte, mesmo a densidade mística que o poema contém.

 Estes quadros reproduzem, traduzidos numa linguagem, quadra a quadra, um dos poemas mais belos que surgiram em Portugal, desde os tempos mais recuados até agora. Só uma pessoa com o talento, a sensibilidade e uma rara capacidade de entendimento e sentir da obra poética seria capaz de interpretar, tão espantosamente, a Ode “Senhora das Tempestades” de Manuel Alegre. (...)

Há uma simbiose de tempestades entre os sons da voz eterna de Manuel Alegre e as cores deslumbrantes, tormentosas e desaforadas de Irene.

O que os une é, talvez, a procura sempre inacabada de uma identidade com o eu, que nunca se acaba de conhecer, com os medos que nos fazem pequenos, com os medos que nos fazem grandes.

Ana Mercedes Stoffel

 A modernidade de Irene Gomes encontra-se na invenção da sua linguagem pictórica. Seja qual for o seu registo grave ou lúdico, ela enuncia a sua composição a partir de uma evocação alusiva à realidade. O seu grafismo descritivo apoia-se num jogo de ritmos subjacentes a um cromatismo franco e contrastado. A sua paleta quente e luminosa privilegia os acordes sonoros que contribuem eficazmente para a poetização da narrativa. A saturação da cor contrasta com os efeitos de transparência, os traços rápidos inerentes ao pastel que ousam a justaposições de tons que os tornam musicais. Estas evidentes qualidades de colorista de Irene Gomes combinam-se em sequências gráficas, quer suave, com curvas e inflexões lineares, quer pelo contrário agudas e rigorosas. Perfeitamente submetida à técnica do pastel, Irene Gomes atinge raríssimas visões solares.
Na sua pintura, tudo se mistura. O homem e os eus mistérios, as suas alegrias e os seus temores, a sua ternura, a sua originalidade. O quotidiano a par com a prece. Profano e sagrado dialogam. As entidades ressurgem de uma memória ancestral e intemporal. (...)

O PINCEL COMO LANÇA
Era inevitável. D. Quixote tinha mesmo que se encontrar com a Irene Gomes. Fatal como o destino. Estava escrito desde o lugar ermo da Mancha, cujo nome Cervantes não queria recordar, que o engenhoso fidalgo haveria de passar pelo atelier da Irene. 
Veio quase sem Dulcineia mas com Sancho Pança por perto. Trazia no rosto um espaço aberto à releitura da realidade. E deixou-se pintar no meio de gigantes que tanto podem ser moinhos como simplesmente o próprio vento a tornar-se visível. Porque onde ela vê desejos, ele materializa-se em desenho. E onde ela pinta cores, ele desenha alegremente as aventuras desejadas por ambos. 
É um jogo de cumplicidade recíproca e a mútua desconstrução da triste figura que todos fazemos quando nos levamos demasiado a sério. 
D. Quixote posou para Irene Gomes como se a sua lança fosse um pincel e a lavadeira do romance se transformasse numa pintora de aguarelas. (...)

LÚDICA E LÚCIDA

A pintura é sempre, independente da capacidade teorizadora do pintor e da sua auto-avaliação como fabricante de imagens, uma expressão de um lugar e de um tempo. Ninguém foge ao seu sítio e à sua época, à sua circunstância e à sua circunvizinhança. Irene Gomes, além de portuguesa da Batalha, é contemporânea de temáticas e de problemáticas das duas últimas décadas do século. Nasceu biologicamente em ditadura e artisticamente em democracia. Isto é, não havendo atravessado o período histórico do nosso mais recente despotismo obscuro, nem por isso deixou de contar com objectivos de combate artístico e cívico. Timor aqui está a reinspirar a recriação do mundo, não sendo a primeira das causas. Já antes participara com as suas tintas multicolores contra o racismo. Já antes se integrara na “Arte e Diálogo” (Encontro Inter-Árabe e Mediterrânico). Já antes glosara em cerâmica “Portugal e o Oriente”. (..)

PINTURA EM VERSO
 Pintura com poesia, para mim, é música. Irene Gomes faz dançar imagens muito íntimas à superfície da tela e expõe-se por palavras paralelas às suas próprias cores.
Gosto desta ousadia, literalmente tão simples como a arte de pintar desta senhora cuja luz queima sem arder. Explode e fica como um clarão silencioso ao roçar do movimento. As palavras dizem que tudo é tão claro, mas há muito musgo para descobrir neste texto de sombras várias. Porque há penumbras poéticas nesta mistura de palavras com personagens que Irene criou em passos anteriores do seu percurso. E toda a gente se junta nesta festa dos sentidos que a autora criou com cheiros e chuva, pedras e pedaços de um corpo em delírio. Da cadência o riso guia teus passos labirínticos diz Irene, lá onde aves e anjos perdem o esvoaçar no desvelo do linho. (..)

Cada obra de arte é uma narrativa. A que Irene Gomes empreendeu há 20 anos, retoma uma história que remonta à noite dos tempos. Para ela, a pintura apareceu muito cedo como o único modo de expressão capaz de ser mostrado por imagens. A sua terra natal, lá está, fecunda, no coração da sua obra. Inculcou-lhe visceralmente, antes de todo o conhecimento e toda a aprendizagem, apenas a sua herança, ou seja, as suas paisagens, os seus habitantes, as suas tradições, a sua terra que o fermento do qual pôde colher os elementos de uma narração impregnada de sentidos. Eis a génese de uma vocação fundeada nos flancos da bacia mediterrânica.
     Mais tarde, com a reflexão e o «saber de experiências feito», Irene Gomes enceta a progressão plástica pelos terrenos da figuração. Não aquela banal e rapidamente captada pelo olhar. Mas antes, uma realidade transposta. Uma apresentação codificada, porque se concretiza através de um estilo, uma escrita por ela mesma elaborada. Irene Gomes faz sua a realidade. Ela intervém e instala, por isso, um distanciamento com as aparências. Melhor, toma de assalto o real, submetendo-o à sua própria expressão. As suas personagens são as transcrições gráficas e coloridas das suas sensações. (...)

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