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Lúdica e lúcida


A pintura é sempre, independente da capacidade teorizadora do pintor e da sua auto-avaliação como fabricante de imagens, uma expressão de um lugar e de um tempo. Ninguém foge ao seu sítio e à sua época, à sua circunstância e à sua circunvizinhança. Irene Gomes, além de portuguesa da Batalha, é contemporânea de temáticas e de problemáticas das duas últimas décadas do século. Nasceu biologicamente em ditadura e artisticamente em democracia. Isto é, não havendo atravessado o período histórico do nosso mais recente despotismo obscuro, nem por isso deixou de contar com objectivos de combate artístico e cívico. Timor aqui está a reinspirar a recriação do mundo, não sendo a primeira das causas. Já antes participara com as suas tintas multicolores contra o racismo. Já antes se integrara na “Arte e Diálogo” (Encontro Inter-Árabe e Mediterrânico). Já antes glosara em cerâmica “Portugal e o Oriente”.

A pintora leva à prática e ao público a sua intervenção e a sua intimidade.A pintora não ignora os desafios gregários nem abdica dos desatinos solitários.Timor arvora-se, pois, numa das suas parábolas éticas, carregadas de sentido político, e de sentimento polido. Polido pelo efeito sublimador da arte que transporta para a Europa o Bazar de Atsabe e o Bazar no Remexio, os galos e a música de um povo sujeito às cotações das armas e do petróleo.

Irene Gomes não faz denúncia directa. Não faz comício nas telas. Basta-lhe citar as cores locais. Basta-lhe situar a etnografia numa geografia sob a égide da ocupação. a pintora que, de Portugal e de si, também regista as Festas da Agonia ou das Gualterianas, que também reporta as sombras dos mosteiros, as memórias de infância ou a libido das quatro estações – a pintora, Irene Gomes, exerce, também uma função narrativa do seu país e do seu mapa emocional. Sendo estruturalmente ansiosa e nostálgica, articula este fundo sensitivo e reactivo com envolvimento social. Envolvimento nas pugnas de purificação do Homem enquanto categoria de civilização. Explicitamente se demarca dos lucros da indiferença.Irene Gomes não se esconde nas ruínas de Pompeia, nem se evade nas areias de Cabo Verde. Uma tensão dialéctica acompanha os seus anseios mais elevados. Uma angústia residual emerge como punição de quem ousa transformar qualquer instante em garantia de júbilo. Entre povos como entre indivíduos. A pintora usa uma paleta convicta da sua maneira da sua energia e da sua simbologia. Usa as crianças como escudos do futuro. Usa galos para as lutas inevitáveis e pombas para as tréguas precárias.Conhece as ligações perigosas entre documentário e pintura, comentário e poesia. Conhece a roda dos egos físicos e a ronda dos morcegos metafísicos Não desiste de um ordenado mínimo de alegria para todos os mendigos de pão e coração, eternidade e liberdade.Irene Gomes tem ateliê num convento. Mas não se recolhe do vento. Não renega a sua parte nocturna, nem a sua parte diurna. Tudo é breve. Tudo é fugaz. Mas acha que vale a pena levantar um grito, fixar um olhar, acentuar uma voz. Porque os deuses só respeitam quem os questionar. Quem não temer os trovões e as suas trevas. Em Timor como no imenso espaço onde a bestialidade defronta o belo, onde merecer viver é resistir, onde sonhar é uma opção lúdica e lúcida. Irene Gomes cultiva o prazer e o dever. Sabe das dificuldades que o sonho tem para ser admitido nas empresas da terra.

 

César Príncipe

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